Espelho

De madrugada perdi o sono, levantei, parei em frente do espelho e não me reconheci:
minhas roupas já não me cabem ou eu não caibo mais nelas, nem esta manchada pele é minha.

Quem me revestiu com pele estranha?
E a minha pele, em que corpo ela se meteu? Quem arrancou o que era meu e trocou na calada da noite, enquanto eu dormia?

Estes olhos secos e apagados não são meus (os meus têm brilho e vivacidade).
Meus ombros não são assim caídos nem os meus braços são tão murchos e pendidos feito ressecados gravetos.
Não reconheço das minhas mãos os dedos macilentos nem as unhas descoradas.
E estas pernas que quase não me sustentam o descarnado esqueleto? De quem são elas?

Não! Não! NÃO!!!! Este por dentro do espelho não sou eu! não mesmo!

Arre!!! Este homem é muito triste! Nem parece humano. Nenhum humano poderia ter olhos assim tão lá no fundo da face, nem tão apagados. Se este fosse eu, teria a pele brilhante, os olhos espertos e não carregaria um semblante assim solitário de quem nunca foi amado, de quem nunca teve amigos, de quem foi por eles esquecido.

E os meus amigos não me esqueceram, nem partiram todos, um a um, aos poucos, sem que eu pudesse dar-lhes um abraço, sem que eu pudesse dizer-lhes “até logo mais, voltem logo”. Eles não teriam coragem de fazer esta maldade comigo. Pois eles sabem que eu também lhes sou fiel, que se algumas vezes andei sumido não foi ter me esquecido deles. Foi por ter me esquecido de mim, só isso.

Os meus amigos, todos têm o coração limpo, não são vingativos, por isto tenho a certeza de que não partiram. Eles não seriam capazes de fazer na surdina um complô, uma armadilha, uma cilada pra me matar e depois fugir. Não me deixariam sozinho. Eles não são de “dar o troco”. Estão lá fora, sim, reunidos e felizes me esperando.

Este que me olha através do espelho não sou eu, nunca! Eu devo ter saído ontem para o trabalho, para a rua, para o mundo lá fora, para a vida que não vejo nos olhos deste que me olha do espelho. Devo ter saído e não voltei. Sim, saí ontem desta estranha casa, deste escuro e frio quarto onde eu só vinha pra dormir. Saí pra encontrar os meus amigos que não me abandonaram e me esperam em algum lugar. Sim, eles estão lá fora, em algum lugar, de braços e sorrisos abertos me esperando. Quando encontrá-los, dormirei, novamente feliz.

Este que me olha do espelho definitivamente não sou eu.

Remisson Aniceto
2019


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