Espantos para uso diário é mágico! Instigante! Profundo e arrebatador!

Este livro do Mário Sérgio Baggio (Editora Coralina, 2019) é assim.

Para conferir, basta ler a bem elaborada sequência de contos, no meu ponto de vista nenhum melhor do que o outro, todos no mesmo patamar de excelência, já que apresentam cada um sem dúvida uma maravilhosa singularidade.

A magia já começa quando o competente Leonardo Brasiliense, com sua visão ímpar sobre autor e obra, dá aquele “puxão na orelha” e nos empurra o olhar para a apresentação que é do próprio Baggio, onde ele nos prova de forma contundente a sua intimidade e sua estreitíssima liberdade no trato com a palavra, comprovadas nas 163 páginas seguintes.

Não sou nem e pretendo ser crítico literário (não tenho formação e cultura literária para me meter em tal empreitada) e se escrevo sobre alguns livros é por pura intromissão. A liberdade de expressão ainda permitida pela internet me possibilita exercitar e divulgar a cotidiana alegria com que sou presenteado por determinadas leituras.

E aproveitarei a abertura oferecida por este Espantos para uso diário para lhes dizer o quanto tenho observado de realismo mágico – ou fantástico, como alguns preferem – em grande parte dos últimos romances e contos de autores brasileiros que tenho lido. Neste de contos aqui não é diferente e nele o autor se joga de vez, inteiriço e sem ressalvas nas histórias. Se num conto ele se veste de herói ou de vilão, naquele outro transforma-se no assassino, na vítima, na esposa, no marido, na criança, no transeunte… E por vezes consegue até mostrar, como Jano – o deus romano das transições, duas faces ao mesmo tempo e em uma mesma narrativa.

Em muitos textos me vi e encontrei o contista, uma vez que a sua habilidade inventiva abre esta porta para a nossa imersão nas histórias. E se ele está inteiro em cada página e convida de forma irrecusável o leitor a também tornar-se personagem, o encontro e a encenação no mesmo palco tornam-se inevitáveis.

Há tempos me apraz tecer considerações gratuitas e descompromissadas sobre os romances que me impressionam, mas percebo que discorrer sobre um livro com mais de sessenta contos deste quilate, e cada um deles com uma tessitura profundamente autônoma e independente, como neste caso, é arrebatador e quase incontrolável.

Como passar sem espanto os olhos pela menina de 15 anos que se torna mãe e vê o seu filho morrer com a mesma idade? Com o homem que da janela vê a sua mulher degolando os filhos no apartamento, volta para casa e finge não ter visto? Com a Sueli que friamente premedita o fim do seu estuprador de camiseta azul? Ou com o preso que milagrosamente ganha a liberdade, mas não cumpre a promessa de publicar o livro do amigo executado no presídio, livro bem guardado na sua memória?

Não tenho a intenção de fazer comparações entre a capacidade narrativa do Baggio com outros notáveis escritores, pois neste livro ele registrou a sua marca, mostrando-se único, portanto incomparável. Mas sabendo que cada bom livro tem este incrível dom de fazer a nossa conexão com tantas outras boas obras lidas, sem a necessidade de citar em quais contos (não lhes furtarei este gosto), é possível o leitor se encontrar com o autor dentro das páginas de Espantos para uso diário, ora como personagem tentando escalar O Muro de Sartre, ora sendo julgado n’O Processo do Kafka ou grudado nas Cadeiras proibidas do Ignácio de Loyola Brandão, outras vezes exilado numa prisão na Sibéria, e até nas praias (onde o Baggio declara que deseja morar) do Rubem Braga, na genialidade do Moacir Sclair (de forma alguma menos fantástico) e até no meu conterrâneo Drummond de Andrade com o seu Flor, telefone, moça. E tantos outros, pois, como citei mais acima, são 64 contos.

Um livro excepcional, arrebatador, assombroso, extraordinário. Maravilhoso e cheio de espantos.

E, se nas palavras do cubano Alejo Carpentier “o extraordinário não é forçosamente belo ou sedutor, não é belo ou feio, mas é principalmente assombroso por ser insólito, se tudo o que escapa às normas estabelecidas é maravilhoso”, leia e maravilhe-se com o insólito em Espantos para uso diário. Assombre-se, espante-se e se reespante ao virar cada uma das suas páginas.

Um abraço do Remisson

Obs: As imagens são do feicebuque do Mário Sérgio Baggio.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *