por Leonardo Almeida Filho

“Em 1949, comentando um conto de autoria da irmã, Marili Ramos, Graciliano, por carta, expõe sua crítica enquanto sedimenta sua profissão de fé literária: “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos” e conclui: “A sua personagem deve ser você mesma”.

Ao ler, com prazer e voracidade, “Toda poeira da calçada”, romance de estreia do tarimbado e premiado escritor Ricardo Ramos Filho, por alguns motivos peguei-me a pensar em Graciliano Ramos. O motivo óbvio, em primeiro lugar, reside no estilo e na linguagem literária do autor, que nos remete diretamente à secura e objetividade do velho Graça. Ricardo Ramos mantem o mesmo tônus, a economia e a parcimônia no uso de penduricalhos como adjetivos desnecessários. Como diria o seu avô: palavra foi feita pra dizer, não pra enfeitar. São frases curtas, diretas, incisivas, que dão ao texto uma dinâmica e um fluxo certeiros, que direcionam o leitor ao cerne da narrativa. O texto é tripartido no que denominou “Cadernos”, 1, 2 e 3, e conta a história, em primeira pessoa, de Rodrigo Ferreira Ferro, um intelectual às voltas com o reconhecimento de sua senectude, mergulhado num tempo de doenças, sociais (abandonos, pobreza, solidões acompanhadas), políticas (ascensão do fascismo no Brasil) e fisiológicas (doenças na família, a COVID, a pandemia). O protagonista expõe suas reflexões sobre esse cenário que abraça sua velhice e sua decisão de escrever um romance, de contar a sua história, de narrar, ao fim das contas, a sua luta contra o olvido, o esquecimento. Nesse sentido, é poeticamente trágico o destino de Ludmila Karpov, uma artista que o mundo não chegou a conhecer e que sucumbiu à pandemia com outros milhares de brasileiros. O narrador nos diz, lamentando e lamentando-se: “Penso nos meus textos e as palavras parecem rir de mim. Também estou condenado ao esquecimento. Eu que nunca escrevi um romance, talvez nem seja escritor de fato. Apenas um reles contador de historinhas infantis. Aos poucos vou me recuperando. Mergulho em um grande vazio onde ficção e realidade misturam-se”. Curiosa essa crença que faz do romance o gênero capaz de definir e estabelecer a figura de um escritor. Talvez resida nessa crença a ânsia e o desafio, que a poucos cabe vencer, de construir um universo diegético, de erigir mundos, Pasárgadas e Macondos. O romance conta a história desse autor e seu encontro com um quadro abandonado, deitado ao lixo. A alegoria do desprezo pela arte em tempos de fascismo é bem construída. Abandonados ao lixo estamos todos, artistas e o povo brasileiro. No fim das contas, para o governo que se apossou do país naqueles tempos de pandemia, somos todos natureza morta a ser descartada. Ao recolher o quadro da poeira da calçada, cuidar de sua recuperação, limpá-lo com esmero, capricho, ostentá-lo com orgulho na parede em sua casa, Rodrigo encarna, mesmo que inconscientemente, a função do intelectual: enfrentar o descaso, o desprezo, a voracidade de todo autoritarismo, com coragem e determinação. Voltando à carta de Graciliano que iniciou essa resenha, Ricardo Ramos parece ter seguido à risca o conselho do avô. Rodrigo é uma construção literária sobre a carne e o sangue do autor do romance. Como Ferro, Ramos é também escritor de histórias infantis, professor, autor premiado. Como Ramos, Ferro tem amigos que se mudaram para Portugal e que lhe fazem falta na interlocução sobre os rumos da literatura. Como Ferro, Ramos também alimenta o desejo de escrever seu primeiro romance e o faz com maestria, com talento de um escritor malhado nas “historinhas infantis”, nos contos e crônicas. Em “Toda poeira da calçada” testemunhamos o encontro de criador e criatura e nos deliciamos com um grande romance editado pela Patuá.”

Brasília, março de 2025
Leonardo Almeida Filho

Fonte do texto e da fotografia: feicebuque do Leonardo Almeida.


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