Nós não somos propriamente vizinhos.

A gente mora em cima do morro e eles lá do outro lado do rio, na baixada. Porém, entre nós apenas pastos.

Os pastores do vizinho acharam a nossa casa e começaram a comer a ração que ficava no pote da varanda, à noite.

Quem vinha era principalmente a pastora branca. Quem o Pepê perseguiu e espantou aqui de cima.

Fiquei fascinada com os pastores: a fêmea branca e dois machos pretos enormes. Tanto que fui indagar na cidade sobre eles.

Contaram que eram pastores do tal vizinho lá de baixo, do outro lado do rio e que eles eram muito maltratados. Passavam fome mesmo. Isso explicava o porque deles virem até aqui em cima a procura da ração da varanda.

Mas meus cachorros são pequenos e ótimos cães de guarda, enfrentando os bichos muito maiores que eles para defender o sítio. Assim, os pastores do vizinho vêm até a cerca do pasto ao lado e latem para os meus. Os meus respondem. E fica essa latição a madrugada toda impossibilitando meu sono.

Outra disputa é quem vai tocar as vacas do homem que aluga o pasto ao lado.

Pepê, Joom La e Liliana Jr adoram tocar vacas. É tipo o exercício diário deles. E os pastores adoram tocar vacas também. Daí, enquanto um grupo tocas as mesmas vacas para um lado, o outro grupo reclama latindo muito querendo tocar as vacas para o lado oposto.

Eu tenho p;ena dos pastores do vizinho porque são muito magros, maltratados e ficam pela cidade pedindo comida. Se eu pudesse, adoraria tê-los por aqui para tratá-los bem como merecem. Mas acho que isso não será possível. Estamos com a lotação esgotada de bichos.

Assim, pelo jeito, vão ficar os pastores do vizinho de um lado e os meus latindo de outro por tempo indefinido.

Boa noite!

Quando eu era criança eu adorava os contos de fadas com as princesas lindas, os príncipes garbosos e a indefectível bruxa que era a parte ruim da história e que fazia o impossível, com magia, para afastar a felicidade da princesa.

Toda menina queria ser uma princesa. Toda.

Até eu.

Por anos os meus sonhos foram moldados para ser a princesa da vida real. Achar o príncipe era fundamental.

Eu estava mais para Gata Borralheira porque meus pais não eram aqueles rei e rainha carinhosos e protetores.

Mas os sonhos de princesa estavam lá.

Eu tive meu dia de princesa vestida num longo branco, tiara e véu. O ápice do sonho da princesa e o final do conto de fadas porque daí eram felizes para sempre, sempre.

Eu juro que eu tentei ser a princesa, embora sonhos nada de contos de fadas enchiam minha cabeça. E eu ia atrás dos sonhos e tentava ser princesa.

Claro que não deu certo.

Uma coisa excluía a outra.

Hoje eu me assumo como A Bruxa.

Não aquela bruxa que faz bruxarias e maldades.

Eu sou a Bruxa do Maleus Maleficarum.

Aquela mulher que vive sozinha na floresta, cercada de natureza e bichos, curando os outros.

Aquela que não se encaixa nos padrões da sociedade da vilazinha local.

Aquela que as pessoas procuram apenas quando têm problemas que só uma bruxa curandeira pode resolver mas que depois é esquecida até o próximo problema.

Uma bruxa tipo Geni do Zepelin.

Bruxa Geni.

Hoje eu dormi muito bem como há muito tempo. E tive um sonho muito interessante que resumia minha vida. E no sonho, me comportei exatamente como fiz no decorrer dos anos: lutei, fui atrás dos meus sonhos verdadeiros (e não sonhos que me impunham) e acabei a Bruxa, sozinha incompreendida na floresta da vila.

Essa é a vida de bruxa.

Bruxa de verdade.

Não vou acabar esse texto com um clichê tipo “quem nasceu para bruxa, não chega a princesa”.

Vou dizer que eu tenho orgulho de ser Bruxa. Que se eu tivesse me assumido mais jovem teria sido feliz mais rápido.

Que a liberdade que eu tenho como bruxa me faz voar mais alto que com uma vassoura.

Que eu estou feliz. Estou em paz.

E estou exercendo minha totalidade.

Eu sou a Bruxa que as princesas queriam ser.

Quando estou em São Miguel do Gostoso, eu gosto de tomar café da manhã vendo o mar.
Eu procuro a mesa e a cadeira onde a visão é melhor, mesmo que seja por uma nesguinha no muro.
A moça do restaurante, a da limpeza, a da recepção, todas sabem que eu quero achar o mar pela manhã e riem.
Dependendo do sol eu mudo de mesa, ajeito a cadeira, troco xícaras e talheres e mudo o adoçante.
E isso, todo dia.
Todo dia a procura da melhor visão do mar.
Hoje havia barquinhos também e eu fiquei tão feliz!
Feliz a ponto de escrever pra vocês.
E não deu para não pensar na vida.
E não é que a vida é uma eterna busca pela melhor paisagem?
Tem coisas que eu não queria ter visto, como a morte de minha querida companheira Graça e que me faz chorar até hoje.
Mas essas coisas que a gente não quer aparecem do mesmo jeito. E apesar delas, eu ainda busco o melhor cantinho pra ver o sol, o mar e os barquinhos. E ser feliz.
Todos os dias.